Duas perguntas diretas abrem qualquer cogitação sobre identidades e diversidade cultural brasileira. A primeira foi feita por Renato Russo, em música cantada pelo conjunto Legião Urbana: - Que país é esse? A segunda é a clássica exortação de Cazuza: - Brasil, mostra a tua cara! A resposta imediata à primeira pergunta é: - O Brasil é um grande país, composto de vários países que falam a mesma língua e são apaixonados pela mesma seleção de futebol. A segunda resposta é, naturalmente: - O Brasil tem a cara de todos os povos que o compuseram.
Relembrando o antropólogo Darcy Ribeiro, que criou uma tipologia cultural para os países americanos, o Brasil estaria incluído no grupo dos “povos novos”, diferentes daqueles incluídos nos grupos dos tradicionais, como os países andinos, com uma multi-centenária cultura incaica que os identifica, e dos incluídos no grupo dos países de culturas européias transplantadas, como a Argentina. Nós outros, povo novo, seríamos o resultado de uma amálgama original de várias matrizes culturais africanas, européias, indígenas e asiáticas. Hoje, o nosso olhar sobre o “povo novo” brasileiro não visualiza um produto acabado, definitivo, resultado mestiço de um processo de diversidade cultural. O povo brasileiro é um povo novo porque vive um processo permanente de preservação e criação cultural, nos marcos da diversidade. Somos um país novo exatamente porque somos mutantes, um país do futuro, como sempre tem proclamado. Quando o futuro chegar, aí sim, seremos um país velho e tradicional.
Neste processo permanente de produção do novo, dois aspectos são importantes. Por um lado, preservar a diversidade cultural brasileira implica na proteção e defesa do patrimônio cultural brasileiro, material e imaterial, conforme definido nos artigos 215 e 216 da Constituição Brasileira, que especifica a prioridade de preservação do patrimônio cultural constituído pelos segmentos não dominantes no processo de formação do Brasil, os indígenas e os afro-brasileiros. É sempre importante reafirmar que o processo de preservação não pode ser um ritual de congelamento no passado de práticas culturais. A preservação de bens culturais é um processo constante de “up grade”, em que as referências originárias se adaptam e se atualizam no convívio com influências culturais de outras matrizes, inclusive aquelas que vem do exterior. Por outro lado, a diversidade cultural brasileira necessita simultaneamente da democracia, como cultura política capaz de assegurar as condições de igualdade de acesso ao fomento e à divulgação a todas as manifestações e identidades que a compõem.
A cultura afro-brasileira é o mais eloqüente exemplo da vitalidade cultural brasileira, em uma ambiência de diversidade. Longe da simples transposição da diversidade cultural e nacional africana para o Brasil, a cultura afro-brasileira constitui-se como cultura negra no Brasil, produto original de uma construção cultural no exílio, em constante intercâmbio com as culturas de outros povos igualmente subalternizados na formação sócio-econômica brasileira. As vias de intercâmbio entre negros e índios é tão evidente que, ainda hoje, em comunidades remanescentes de antigos quilombos, não saberemos onde termina o quilombo e onde começa a aldeia.
A marca original da nossa cultura negra brasileira é a sua obstinada resistência. Principal vítima da antiga escravidão e do subseqüente sistema de desigualdade racial, as populações negras brasileiras foram historicamente excluídas da fortuna, dos prestígios e do poder. Ao invés da resignação à inferioridade e a um destino de desaparição biológica e cultural, como ocorreu no Rio da Prata, os negros brasileiros constituíram na cultura o seu território de resistência. Aí se reavivaram as matrizes culturais africanas e se desenvolveram as estratégias de enfrentamento e negociação com os ricos e poderosos, sempre não negros. No lugar de um discurso político e ideológico, o desenvolvimento de um discurso identitário negro construiu o núcleo dinâmico de um processo contemporâneo de valorização cultural, de promoção social e de plenificação dos direitos de cidadania. A música, a dança, as manifestações religiosas, a estética pessoal, a história e a literatura foram os nossos manifestos de resistência. Cada um destes lugares de resistência é um exemplo histórico de construção de identidade em um ambiente de diversidade cultural.
A capoeira, por exemplo, como cultura corporal que se expressa como luta, como dança, como religiosidade, como jogo e brincadeira, afirma-se, hoje, ao lado da música, como a prática cultural brasileira de maior difusão em todo o mundo. Contam-se aos milhares os centros e grupos de capoeira, do Japão ao Canadá. Ela é o produto original de um processo de sistematização de vários jogos de perna e lutas marciais africanas que se operou no Brasil, por mestres negros que circulavam entre Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Incorporou os elementos místicos do Candomblé de Nação Angola, absorveu golpes e símbolos das artes marciais orientais, dividiu-se até em duas expressões, ditas Angola e Regional. Com todas as achegas, continua Capoeira e continua em expansão. Assim como a Capoeira, o Samba afirma-se e expande-se na diversidade. É samba duro, samba-de-roda, samba-côco, samba escola, samba pagode, samba reggae. Em sua diversidade de samba, continua a ser samba negro e brasileiro, que se dança no pé e nos quadris, que sacode sandálias e adereços.
Graças a esta vitalidade da resistência cultural, a nossa cultura brasileira não ficou aprisionada em uma condição subalterna e colonizada de simples regionalismo lusitano. Há quase um século atrás Noel versejava: - É brasileiro, já passou de português. Assim, a resistência cultural afro-brasileira, é também a independência da cultura brasileira em seu conjunto, entendida como um permanente processo de mudança, em que afirma-se a identidade nacional em sua diversidade.
GILBERTO PASSOS GIL MOREIRA 音楽家、作詞家、歌手、政治家、知識人、「Movimento Tropicalista」の参加者、ブラジルの文化大臣。
Ministerio da Cultura 文化省 Fundacao Cultural Palmares パウマレス文化財団 Revista Palmares Ano 1 - Número 1 パウマレス誌 第1年1号 Agosto 2005 Cultura Afro - Brasileira 2005年8月 アフロ・ブラジル文化